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O que o Sankofa nos ensina sobre Propósito?

Lembro-me como se fosse hoje: o dia em que viajei para me mudar para os Estados Unidos. Sentado em um avião, estiquei meu pescoço do assento do corredor até a janela da fileira para ver o avião se deslocando cada vez mais rapidamente na pista. Me lembro de ter o olhar fixo no trajeto já percorrido, como se estivesse em um trem no assento do sentido contrário. Mais alguns instantes e o grande pássaro dos ares estava fora do chão. Lentamente, desviei meu olhar da janela, retorci meu corpo para a posição original, respirei fundo, e fechei meus olhos. Bola pra frente, como diz meu pai.


Sempre que essa memória vem à minha cabeça, lembro da frase do filósofo Kierkegaard: “A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente”. Estava compreendendo o que já foi, para abrir espaço para o novo, para o que me esperava no futuro. Conto essa história porque no mundo do Branding e das empresas, muito se fala sobre Propósito, mas pouco é dito sobre a importância deste mesmo movimento que realizei no avião: olhar para trás, conscientemente, para seguir em frente. 


O povo Akan, localizado na África Ocidental, mais especificamente em Gana e Costa do Marfim, cultiva uma simbologia que se conecta demais com esse tema. O nome do símbolo é Sankofa, representado como um pássaro com os pés no chão, com a cabeça virada para trás, segurando um ovo com seu bico, e voando para frente. Tal símbolo se originou do provérbio ganês: “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que você esqueceu (perdeu)”.


Talvez, o que Sankofa pode nos ensinar é que, quando se trata de empresas e marcas, o Propósito deve nascer de uma vontade genuína de respeitar o passado, alimentar o presente, e inspirar o futuro. No livro de Rajay Gulati, “Deep Purpose: The Heart and Soul of High-Performance Companies”, o autor retrata duas tensões que existem dentro de empresas quando se diz respeito às suas relações com seu próprio passado, concebidas originalmente pelo estudioso organizacional Sierk Ybema. Uma se chama nostalgic, onde o passado é visto com uma certa melancolia e um caminho que a empresa infelizmente acabou se desviando. O outro é o postalgic, uma visão oposta, em que o passado assume um caráter negativo. A perspectiva que movimenta líderes progressivos a criar uma ruptura com o que já foi em prol do desenvolvimento de algo mais inovador e orientado ao futuro. 


Geralmente, essas duas tensões existem separadamente, isoladas uma da outra nas empresas. Mas claro, há exceções para essa regra. Em 2014, a Microsoft quis explorar seu Propósito após a entrada de um novo CEO, Satya Nadella. Contando sobre estas experiências em seu livro “Hit Refresh: The Quest to Rediscover Microsoft’s Soul and Imagine a Better Future for Everyone”, Nadella e a empresa dedicaram horas e horas à escavação de seu Propósito, tendo em mente a meta de tornar a Microsoft uma empresa mobile-first e cloud-first. Cuidadosamente, fizeram isso honrando o passado, a alma, e a missão fundadora da instituição. Líderes de empresas fiéis a um Propósito sempre tem isso em suas cabeças. Como o Sankofa, eles olham para trás para seguir em frente, respeitando as duas linhas do tempo, sem se prender no passado e sem querer pular imaturamente para o futuro. Uma combinação sábia de nostalgic com postalgic. O Propósito escavado com cuidado se alimenta dessas duas tensões, preserva o passado, a origem e vai em busca do novo, do original. Aliás, vale ressaltar, poucas vezes nos lembramos que as palavras origem e original têm a mesma raiz. Ou seja, para sermos originais no movimento postalgic, é preciso voltar às origens, para o nostalgic


Em seu credo, escrito pelo chairman Robert Wood Johnson, a Johnson & Johnson também realizou um ato similar ao do Sankofa e da Microsoft. Leia parte do texto que inspirou a empresa pelos anos que viriam:


“Acreditamos que a nossa primeira responsabilidade é com os pacientes, médicos e enfermeiros, com as mães e os pais e todos os outros que utilizam os nossos produtos e serviços.”


E logo depois:


Devemos experimentar novas ideias. A investigação deve ser continuada, os programas inovadores desenvolvidos, os investimentos feitos para o futuro e os erros pagos.”


Realmente, um ótimo exemplo de honrar as responsabilidades primárias delineadas desde a fundação da empresa (nostalgic), e ao mesmo tempo, olhar para frente e para o progresso (postalgic). Tal credo serve como uma ponte do passado para o futuro, do que já foi para o que poderá ser. 


Um outro grande exemplo aconteceu com a Apple, alguns anos antes do diagnóstico de câncer do Steve Jobs. Em 2008, Jobs criou a Apple University, um local de treinamento para que os trabalhadores da empresa compreendessem a história da empresa de uma forma mais profunda. Mas o interessante com essa ação foi que, ao mesmo tempo que Jobs queria que todos soubessem do passado da Apple, ele indiretamente guiava as pessoas, inclusive o novo CEO Tim Cook, a criar novos caminhos e levar a essência da empresa para novas gerações. O Propósito da Apple, como o Sankofa, desenvolveu-se com o bico para trás, mas com o corpo virado para frente, para o novo. 


De nosso lado, na TroianoBranding, também temos a mentalidade Sankofa em todos os projetos que envolvem Propósito, conduzimos para nossos clientes, desde 2007. Um dos projetos dos quais temos orgulho de ter participado foi o que fizemos para o IHF (Instituto Helena Florisbal), chegando ao Propósito da empresa usando nossa metodologia da Rota do So(u)l. Depois de nos aprofundarmos no universo da IHF, delineamos os talentos e necessidades da empresa nas etapas SOU e SOUL, chegando finalmente ao Propósito da mesma: Fortalecemos caminhos que impulsionam vidas. Só foi possível alcançar este nível de conclusão com a retrospectiva e recapitulação dos valores da empresa, especialmente na fase SOU, onde escutamos vários profissionais e estudamos o passado do IHF–o que tinha sido feito até então, para que pudéssemos seguir e voar em frente para um novo caminho–sempre respeitando a história e estrada caminhada pelo cliente. A verdade é que, sem esse olhar para trás, para as tradições, para os costumes, nunca teríamos abarcado tudo o que o IHF poderia ser e representar no mercado brasileiro. Tudo o que ele poderia trazer de relevante, mantendo seus pilares para que esse novo trajeto não seja um de superficialidade e inovação efêmera. 


O que, afinal, significa olhar para trás e voar para frente? No nosso mundo atual, a soberba digital atropela a simples ação de valorizar o passado. Ela hiperboliza, enaltece a importância de chegar e entregar o que vem pela frente. Aliás, ela tem esse mau hábito de avançar em direções fixas. Portanto, Sankofa nos apresenta um porém: qual o ponto de voar sem ter as duas perspectivas como pontos de referência–sem olhar para trás para escavar soluções e novas oportunidades muito mais ricas? Propósito é, além de tudo, uma arte paradoxal. Um paradoxo que funciona. Mas já pensou em ter uma perpétua visão de túnel, acorrentado a seguir uma só direção? Isso sim é entrar em uma grande fria!

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