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Heitor: O patrono dos algoritmos

Por: Jaime Troiano


Há alguns anos, durante uma análise da relação entre leitores e veículos, ouvi o Heitor, um entrevistado, dizer o seguinte: “Adoro este jornal, que assino há muitos anos”. Com a bola pingando na área, eu perguntei o porquê desse sentimento.


Resposta, na lata: “Porque ele diz exatamente o que eu penso”.


Eu acabei elegendo o Heitor como o patrono honorário e precursor dos algoritmos. Convenhamos, uma láurea absolutamente merecida.


Nunca mais me encontrei com ele, mas posso imaginar o seu regozijo ao ver essa disseminação incontrolável dos algoritmos na vida de todos nós e o quanto sua inspiração foi ouvida pelos sacerdotes da engenharia digital.


O que o Heitor não poderia supor é o quanto essa forma de se alimentar apenas do que ele já conhecia e de se blindar contra o contraditório, fez dele uma recorrente e monótona reprodução de si mesmo.


Não é exatamente isso que os algoritmos acabam fazendo? Um sedutor espelho retrovisor para nos aconselhar e dirigir os passos seguintes que damos. A tola segurança de que meus desejos, minhas preferências não serão negados e nenhum atalho inesperado vai me colocar frente a frente com a confrontação das minhas convicções. Está aí o melhor caminho para preservá-las: não espiar do lado de lá do muro. E agir como um Bartleby do antológico conto “O Escriturário” de Herman Melville, dizendo um sonoro não para novas e imprevisíveis trilhas.


O Heitor é o congelamento das suas próprias convicções, as que foram se cristalizando ao longo da vida. O algoritmo é isso também. Uma política cuidadosamente planejada que preserva o congelamento contra o risco do descongelamento de ideias. Contra o aparecimento de novas visões e tentadoras incursões em territórios desconhecidos. O Heitor é o Ulisses preso ao mastro para resistir à sedução das musas marítimas. O algoritmo é o mastro e também as amarras que impedem a aventura e o risco. E evita a deliciosa experiência de se perder e de encontrar novos caminhos e conteúdos internos, esses que reconstroem a cada novo momento o percurso da nossa vida. É disso que o Heitor morre de medo, de correr o risco de uma sacudida em suas pétreas e cômodas certezas. É por isso que as plataformas de streaming, por exemplo, sempre o aconselham a evitar filmes que não se pareçam com o dia da marmota, o Feitiço do Tempo (Groundhog day), com o Bill Murray. E evitar, a todo custo, a aventura imprevisível do mesmo Bill Murray no Encontros e Desencontros (Lost in Translation).


O Heitor adora aqueles restaurantes "algorítmicos", que eu particularmente odeio. Aqueles onde você não escolhe, mas escolhem por você. Onde, em dois ou três pratos, você come o que já sabia o que ia comer, conhece o sabor, a aparência, em cada garfada.


Nesta fase da nossa sociedade, a luta justa não é contra a alquimia dos algoritmos. Afinal, identificá-los como os impiedosos inimigos é enfiar a lança contra moinhos de vento.


A luta justa é romper com a obrigatoriedade da submissão e da sedução que eles nos impõem e abrir novas trilhas para o criar o futuro, para não viver apenas do playback do que já deu certo.


Hoje em dia se fala muito em felicidade, felicidade isso, felicidade aquilo, temos que sempre ser felizes e não podemos dar espaço para a tristeza, para o enfrentamento de nossos medos, para a introspecção.” (Gabriel Troiano)


O Heitor precisa ter coragem de dizer não para as recomendações como essas que inundam os streamings, do tipo: você que viu O estrangulador de Boston, vai gostar de ver Candy - uma história de paixão e crime. E dizer não para aquelas que nos inundam com ofertas que simplesmente repetem nossas decisões de compra anteriores.


A construção do futuro, algo pelo qual sempre clamamos em marketing e comunicação desde o início, depende das rachaduras e das frestas que fizermos no monolito dos algoritmos, deixando o ar fresco de novos desafios e descobertas entrarem. E torcer para que as inspiradoras brisas que criam e fertilizam nos invadirem.


Sei lá se o Heitor está disposto a caminhar conosco e correr riscos. Acho difícil. Afinal, ele treme e sua frio quando nos ouve ao longe cantando “Nada do que foi será do jeito que já foi um dia” (Lulu Santos).


Publicado originalmente no Meio & Mensagem (edição de 22/05/2023)

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