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Etnografia: o espelho do mundo em mim

 Só entende de marca quem entende de gente

Sou publicitária e, durante a minha jornada na faculdade, poucas eram as matérias de que eu não gostava ou pelas quais tinha pouco interesse. Uma delas era a aula de Pesquisa de Mercado, justamente minha área de trabalho hoje. Nunca que eu ia imaginar que trabalhar com pesquisa faria tanto sentido e como isso seria capaz de me transformar. 


Eu sempre fui falante, uma pessoa interessada nos outros, amante de livros de autoajuda e de cursos de autoconhecimento. Curiosa e com tédio do silêncio, puxo papos em todos os lugares possíveis, seja com motoristas de aplicativo ou em esperas de consultório. No fundo, eu já nasci pesquisadora de mim e do mundo. Mas foi há sete anos que, de fato, comecei a minha história com Pesquisa e Branding, na TroianoBranding. 


No meu trabalho, mais do que entender como as pessoas enxergam e se relacionam com determinadas marcas, eu tenho a oportunidade de conhecer muitos brasileiros e suas realidades, inclusive várias delas bem distantes da minha. E ainda que na minha vida pessoal eu tenha furado a ‘minha bolha’, foi trabalhando com pesquisa que percebi que nada era comparável com essas experiências. Isso acontece principalmente nas vivências etnográficas. Etnografia, para quem não sabe, é uma especialidade da antropologia que estuda a descrição de povos, língua, raça, religião, etc. 


Traduzindo isso para o meu dia a dia profissional: eu visito a casa de consumidores. Nessas visitas, mais do que perguntar sobre coisas relacionadas ao tema do projeto, como por exemplo, o que a pessoa acha sobre um salgadinho X, meu objetivo é conhecê-la de forma mais profunda. Eu busco entender quais são seus sonhos, desafios, preocupações, anseios, comportamentos, o que ela espera da vida e claro, em primeira instância, como aquela marca faz parte do seu contexto. 


Durante esses anos, fiz muitas visitas que me marcaram. A primeira de que eu me lembro foi de um projeto com adolescentes, no qual eu visitava a casa de algumas meninas para conversar sobre o uso dos anticoncepcionais. Foi assim que conheci a Marina. Marina era bem jovem, tinha seus 14 ou 15 anos e, nessa conversa, me contou que o sonho dela era ser atriz e apresentadora e cursar Rádio & TV. Para começar essa carreira, ela tinha criado um canal no Youtube. A maneira como falou do seu sonho mexeu tanto comigo que comecei a segui-la nas redes sociais. Durante os últimos anos, eu a acompanhei e não só ela se formou em Rádio & TV pela Cásper Líbero, como hoje trabalha em uma rede de televisão e é influenciadora no Tik Tok. 


É muito legal ver uma pessoa que tinha um sonho, batalhou por ele (a realidade dela não era exatamente fácil) e conquistou o que desejava. Mas nem sempre as vivências nos trazem essas delícias. Na verdade, na maior parte do tempo, lidamos com o lado sofrido do ser humano, com dificuldades e fatalidades que são enfrentadas pela maior parte dos brasileiros. A minha primeira experiência deste tipo foi em uma cidade de que até então eu nunca tinha ouvido falar: Timon. 


Timon é um município brasileiro do estado do Maranhão, que fica na divisa com o estado do Piauí. Tem em torno de 175 mil habitantes e é relativamente uma cidade simples. Fui para lá entender como era o trabalho de um cliente da área de saneamento básico naquela região. Meu objetivo era investigar como as pessoas percebiam essa empresa, qual a imagem que tinha dela. E a surpresa foi muito maior do que eu esperava, começando por uma conversa com um funcionário de uma Estação de Tratamento. Ele era um senhor bem velhinho, que chegou para conversar comigo timidamente. Me disse que era muito grato pela oportunidade de trabalho, mas principalmente porque pode aprender a escrever seu próprio nome depois de participar de um programa de alfabetização que a empresa oferece. Você tem ideia do que isso significa? Uma pessoa passar a vida toda sem saber escrever seu próprio nome?


Em outro momento, nessa mesma viagem, enquanto eu esperava no saguão para entrevistar um funcionário do escritório, um motoboy me abordou. Ele me ouviu falando do projeto e disse que fazia questão de contribuir, de contar a sua história. Ele era terceirizado, fazia entregas, mas me disse que o orgulho era tanto, que ele sempre dizia que era funcionário da empresa de saneamento. Nunca vou me esquecer de suas palavras: - “Olha moça, eu queria contar a minha história…Eu tenho muito orgulho em trabalhar aqui, sabe? Sei que eu sou terceirizado, mas sou tão grato, admiro tanto essa empresa, que eu falo que trabalho nessa empresa mesmo. Antes deles chegarem, eu tinha que andar mais de 2 quilômetros com baldes e outras coisas na mão, junto com meus vizinhos, para buscar água. Eu não tinha uma torneira em casa que saia água…E agora, graças a eles, eu tenho. Eu consigo ter água para a minha família”. Você que está lendo esse texto, por acaso você já imaginou a sua vida sem uma torneira? Sem um chuveiro? Sem água? Nós não paramos para pensar nisso, porque vemos a água escorrer todos os dias, seja lavando a mão, tomando um banho, bebendo de um filtro e, na maior parte das vezes, não refletimos: poxa, tem gente que não tem isso. 


Isso acontece porque não somos expostos a essas realidades, não furamos a nossa bolha para ver o que está acontecendo do lado de fora, seja da nossa cidade ou até mesmo do nosso lado. Vivemos em um mundo frenético e turbulento, no qual mal dá tempo de olhar para perto, muito menos ter essa visão ampliada. Mas, graças ao meu trabalho, tenho a oportunidade de conhecer essa dor e, ao mesmo tempo, viver algo positivo também, que explico em seguida. 


Minha última experiência desse tipo foi bem recente. Viajei a Belém para visitar três casas muito simples, que tinham histórias tristes e vidas desafiadoras. O projeto era sobre eletrodomésticos, mas como sempre, precisamos entender quem é a pessoa por trás da posse desses produtos. 


A primeira  conversa já foi muito tocante. Visitei uma mulher de 34 anos, chamada Sabrina, que me contou seu esforço para cursar advocacia. O quanto ela deu duro para pagar a faculdade e se formar. Para isso, ela vendia e ainda vende doces. Além das duas profissões, ela ajudava em casa e me contava tudo isso com um largo sorriso no rosto: “É difícil, mas a gente tem que lutar, a gente não pode desistir. Me falaram que eu não ia ser advogada e aqui estou eu, formada! Meu sonho é fazer uma pós-graduação”. Eu vi no olhar dela a paixão pela sua profissão e como era difícil seguir esse sonho. 


Sabrina me contou sobre episódios de discriminação que enfrentou não só pela diferença social, mas também pelo racismo que ainda é muito presente na nossa sociedade: “Sabe moça, é difícil para mim… Me julgam porque eu não tenho um escritório de advocacia, eu divido um computador com uma amiga… E outro dia, eu ainda tive que ouvir o juiz se dirigindo à minha cliente, como se ela fosse a advogada do caso, só porque ela era loira, de pele clara e eu, preta”. Sabem quantas mulheres como a Sabrina existem em nosso país? 


Mas de todas as visitas, a que mais doeu, comoveu, encheu meu peito de esperança e amor, tudo ao mesmo tempo, foi a da Valéria. Valéria é uma mulher de 40 anos, que mora em uma casa bem simples, em uma rua semi asfaltada, difícil de chegar, bem íngreme. Casada, mãe de três filhos, um deles com paralisia cerebral, ela não só cuida do filho o dia inteiro, como mantém uma casa tão impecável que o chão chega a brilhar. Vende picolé a R$ 2,50 na porta e ainda, aos finais de semana, lava roupa para fora para ter uma renda extra. Mulher forte, potente, que abraça o mundo e que me disse, com os olhos marejados, que seu maior sonho é simplesmente: “Ah, meu maior sonho é ter tempo de qualidade com a minha família. Eu não consigo dar atenção para os meus três filhos juntos, porque o do meio depende de mim… Não tenho condições de, aos finais de semana, levá-los a qualquer lugar. Vivo a maior parte do tempo em casa mesmo, não tenho como sair”. 


Ela me contou sobre os dias em que faltou dinheiro para comprar pão para seus filhos, sobre como gostaria de ter um carro para levar seu filho PcD em um passeio, sobre tantos e tantos desafios que ela enfrenta. E, ao mesmo tempo, falou do  orgulho que sentia da  filha mais velha, a Micaeli (vejam que nada é por acaso), que estuda farmácia. Valéria diz que vai fazer de tudo para que a filha possa cursar a pós-graduação, ainda que ela não tenha tempo para nada, muito menos para si mesma. E se ela pede um presente ou ganha algo, são sempre itens que poupam tempo na cozinha ou lhe proporcionam um momento de prazer, como uma cafeteira. 


Ela disse que não tem autoestima, com lágrimas escorrendo pelo seu rosto, e que ninguém nunca a ensinou a ser vaidosa. E eu, por ter ficado sensibilizada por toda essa história, ouvindo essa mulher tão guerreira, tão amorosa, que lida com todos esses desafios com tanta leveza, não só decidi que vou ajudá-la financeiramente, como naquele momento, ouvi todas suas dores acariciando seu braço. Aproveitei o momento também para dizer a ela coisas que talvez um estranho, ou poucas pessoas ao seu redor, tenham lhe falado. Eu disse: “Você é uma mulher potente, f#da. Você tem que ter autoestima sim, porque são poucas as pessoas que dão conta de tudo como você dá e que ainda fazem isso com amor e sorrindo.” 


Quando estávamos quase indo embora de sua casa (eu estava acompanhada por uma cliente), ela apontou para uma imagem pendurada na parede e disse: “Vocês conhecem a história de Nossa Senhora de Nazaré?” e assim contou sobre uma procissão que acontece na cidade e mostrou fotos da Basílica. Eu e a cliente, comovidas do jeito que estávamos, interpretamos aquilo como um sinal. Após finalizar as entrevistas, fomos diretamente conhecer a Basílica e agradecer muito pelas nossas vidas. Eu, que não sou católica, saí dessa igreja cheia de santos, velas, fitinhas… com tudo que dava. Inclusive, foi essa a única compra que eu fiz na viagem. 


Não é todo dia que a gente tem a oportunidade de conhecer uma história como a da Valéria, mas histórias como a dela acontecem todos os dias e em todos os lugares. Graças à minha profissão, eu conheço mais Valérias e, isso faz com que eu reflita mais sobre as desigualdades, desafios e também sobre os sonhos. Eu não fazia ideia de que trabalhar com comportamento das pessoas não só não seria chato, mas poderia ser muito enriquecedor. Ser ‘pesquisador’ tem um lado doloroso e desafiador, porque nos deparamos com os próprios medos e feridas, mas acima de tudo, é transformador de um jeito positivo. A Michaela antes da pesquisa podia até ser ‘pesquisadora’, mas não era a pessoa empática e consciente que é hoje. Trabalhar nessa área fez de mim um ser humano melhor. 


Estou escrevendo esse texto em meio a tudo que está acontecendo no Rio Grande do Sul, o que me fez refletir mais ainda sobre todas essas vivências. Essa tragédia, sem dúvidas, acontece em proporções estratosféricas, mas infelizmente sofrimentos assim, com perdas, falta de água, de comida, de um teto… acontecem todos os dias. A diferença é que nós não somos expostos a essas realidades do mesmo jeito que vemos as cenas da tragédia em todas as redes sociais e noticiários. Entretanto, há Marinas,  Sabrinas, Valérias e muitos outros brasileiros em toda parte que passam por vários desses desafios e que, ainda assim, em meio ao caos, seguem com um sorriso no rosto. São pessoas que não desistem nunca de lutar por seus sonhos e que fazem isso com muito amor no coração. 


Que a união e a comoção que estão emergindo desse episódio se tornem constantes, presentes. Que a gente se lembre sempre de agradecer pelas nossas vidas, sem esquecer que o mundo lá fora, fora da bolha, pode ser muito doloroso e triste e que há pessoas precisando da sua ajuda para atravessar seus dias. Então, que todos sejamos ‘pesquisadores’ do mundo e assim, possamos nos deixar transformar. 


Termino essa reflexão com uma música de Chico Buarque, Gente Humilde. Faço isso em homenagem ao meu chefe, que não só me mostrou essa letra, mas que é um dos meus grandes guias nesse caminho de transformação: 


“E aí me dá uma tristeza no meu peito

Feito um despeito de eu não ter como lutar

E eu que não creio, peço a Deus por minha gente

É gente humilde, que vontade de chorar”


Isso tudo é muito importante para a minha vida, para quem eu sou, quem eu me tornei depois desses anos, mas trabalhando em uma empresa de Branding que valoriza o humano, que acredita que só quem entende de gente, entende de marca, isso é ainda mais fundamental. Ter um coração aberto e estar verdadeiramente disponível para conhecer o outro, é que faz o nosso trabalho ser valioso e faz das marcas espelhos da verdade. Não há inteligência artificial que substitua a sensibilidade de um olhar humano. 


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