O Brasil começou como uma extensão da Coroa Portuguesa, como a reprodução de um modelo medieval tardio. Aliás, dizer que começou não é verdade. Milhões de brasileiros já estavam aqui há séculos, já haviam começado muito antes.
De 1500 em diante, adotamos um modelo de desenvolvimento e de identidade que espelha o estilo e os padrões dos povos e nações que sempre inspiraram a maior parte dos brasileiros.
Temos sido miméticos, por excelência! Ou seja, temos apenas copiado. “Toda cultura incorpora um ideal de felicidade. Desenvolvimento para quê? Devemos buscar, como nação, a perfeita e acabada ocidentalização que há séculos nos elude? Ou devemos, antes, procurar determinar nós mesmos, à luz do que somos, a nossa própria métrica de sucesso e realização, aquilo que nos distingue, aquilo que tem valor?” (Eduardo Giannetti – Trópicos Utópicos- Companhia das Letras).
Como também diz Giannetti, tudo indica que estamos sempre buscando ser como os povos ocidentais desenvolvidos. Até parece que sua própria história foi costurada em nós, como a sombra do Peter Pan. Segundo ele, nós temos resistido a reconfigurar nossa personalidade como país na busca um equilíbrio mais promissor entre duas vertentes: a mimética, que já conhecemos muito bem, e uma outra que ele chamou de profética, ou messiânica.
Já sabemos muito bem como operar a vertente mimética. É o que temos feito durante toda nossa história. Naturalizamos hábitos e crenças como se fossem os únicos caminhos para chegar onde estão nossos irmãos dos países desenvolvidos. E acreditamos que o tempo se encarregará de eliminar o descompasso entre nós e eles. Quando aprendermos a gerenciar nossos projetos econômicos e sociais, como eles nos ensinaram, seremos bem recebidos nos grandes salões de festas desse mundo que admiramos há tanto tempo.
Humildemente, creio ser uma doce ilusão apostar que podemos continuar ignorando a contribuição profética, que brota de nossas mais autênticas raízes culturais, humanas, artísticas e religiosas, em nossa personalidade mais plena. Elas clamam subterraneamente. Quantas e quantas vezes não foram abafadas? Como se fosse a ação da “patrulha mimética” que impede que desabrochem de vez e ganhem alguma hegemonia no país.
Um bom exemplo: depois de 100 anos, uma dessas manifestações está acanhada, diante de nós. Pensem na timidez com que o grande movimento cultural da Semana de Arte de 1922 está sendo lembrado e celebrado. Algumas iniciativas aqui e ali que, nem de longe, são capazes de recuperar e espelhar a grandiosidade de seu impacto na evolução da nossa vida artística e cultural. Os seus desdobramentos em nossa maravilhosa narrativa literária, no Cinema Novo, no Tropicalismo, conseguiram, por algum tempo, furar a dominação da “patrulha mimética”. Mas por algum tempo apenas. A indústria cultural que tem nos conduzido se encarregou de terraplanar essas erupções proféticas.
Quem nos vê ou já conseguiu nos ver por inteiro sabe: a identidade com que nos apresentamos como nação é apenas uma parte do que somos – é uma fração que fala pelo todo. Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Roger Bastide, Roberto Gambini, apenas como referência de alguns que eu tive o privilégio de estudar, estes sim, sempre usaram uma lente grande angular para nos ver por inteiro.
É ainda mais curioso como o olhar estrangeiro muitas vezes vê e valoriza em nós algo que tratamos com certa displicência e puro desinteresse: a riqueza sincrética de nossas múltiplas possibilidades humanas. “Brasil, samba que dá/Para o mundo se admirar” (Ary Barroso).
Quando vejo a Grande Rio vencer com o enredo "Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu", que celebra a matriz africana, ou o Gilberto Gil com o fardão da Academia Brasileira de Letras, enxergo uma fresta do que será o florescer da maravilhosa aquarela profética brasileira.
Jaime Troiano
Engenheiro, sociólogo, diretor da TroianoBranding
Publicado originalmente no jornal O Globo, em 22/05/2022
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