Por: Jaime Troiano
Em 1578, o exército português foi derrotado na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos. Nela, as tropas foram dizimadas e D.Sebastião, rei de Portugal, perdeu a vida. Nasceu, a partir, daí o mito sebastianista, segundo o qual um dia ele voltaria e restabeleceria o domínio português, seu prestígio militar e náutico.
Como todos sabemos, ele nunca voltou, mas o mito messiânico atravessou todos esses séculos. Nós brasileiros, assim como outros países, somos seus herdeiros e cultivadores do mito. Nosso país acompanhou muitos episódios messiânicos e milenaristas. Canudos na Bahia, Contestado no Paraná, Terra sem males dos Guaranis etc. De alguma forma, por caminhos não muito fáceis de compreender, esses sentimentos mágicos e inspiradores foram inoculados em nossa alma, na argila que nos constitui.
Muitos desses movimentos têm uma projeção libertária. Um sonho de redenção. A expectativa de romper com a dureza e a limitação da sociedade em que se vive. Esse é seu lado luz, a mudança das condições injustas, sofridas da vida como ela é. Mas ao longo de nossa história, temos vivido muito mais uma penumbra, o lado sombra do messianismo, que nos mantém na eterna esperança do retorno de quem possa nos redimir. Algo típico de um país que está “Deitado eternamente em berço esplêndido.”
É a carga genética de nossas crenças messiânicas que sempre nos manteve nessa interminável expectativa, de algo em que não conseguimos pôr as mãos. Como um protagonismo que sempre “terceirizamos”.
Não estamos no terreno de um debate ideológico. Independente de vertentes ideológicas que acompanham nossa história, imaginamos que o sonho e o desejo de movimentos que projetem e antecipem o nosso futuro sejam da responsabilidade de um condutor ungido para fazer com que isso se materialize.
Chico Buarque, um dos grandes leitores da alma brasileira, antecipou o que tentei dizer nos seus versos do “Deus lhe pague” (1971):
“Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir Por me deixar respirar, por me deixar existir Deus lhe pague…
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir. Deus lhe pague.”
Apesar dessa carga genética que nos acompanha, dessa esperança etérea que sempre alimentamos, dessa recôndita vontade de negar nossa histórica letargia, não estamos diante de uma condenação definitiva.
Não precisamos voltar tanto no tempo para demonstrar isso. O impeachment do Collor com os Caras Pintadas que nos conduziram num movimento febril de mudança. E mais pra frente, o Movimento Passe Livre, horizontal, autônomo, independente e apartidário, deixou sementes de um protagonismo social que torço para florescer novamente. Voltando um pouco mais ainda, a luta pelas diretas brotou dessas mesmas sementes.
Eu me lembro bem de uma peça, baseada em texto do Brecht, que vi no Teatro de Arena, na década de 1970, com o Renato Borghi entre outros. Em determinado ponto da peça, ele diz algo de que nunca mais me esquecerei: Miserável país aquele que não tem heróis / Miserável país aquele que precisa de heróis!
Coisas de que a gente não se esquece são sementes que ficam esperando a melhor ocasião para brotar e florescer. Quando transferimos para os heróis ou supostos heróis a iniciativa de nos salvar de um certo sedentarismo existencial é quando "terceirizamos" nosso destino. E o colocamos nas mãos de algum “despachante”.
O único remédio contra isso é aceitar, definitivamente, que D.Sebastião nunca voltará! Enfim, tudo está em nossas mãos, como sempre esteve.